Lug
(ou Lugh) foi um dos mais populares e difundidos deuses celtas. É
sempre descrito como um homem jovem, armado de uma lança de arremesso.
Realizavam em sua homenagem um festival chamado lughnasadh.
Ele descende de uma linhagem mista — Tuatha e Fomore —, mas foi com sua imprescindível ajuda que os primeiros conseguiram derrotar os segundos. Sua mãe é Tailtiu, a própria Irlanda. Ele é o guerreiro mais completo de toda a ilha, pois sua habilidade com as armas se une a maestria em diversas atividades, como ferreiro, carpinteiro, poeta, historiador, estrategista militar, artista, druida, médico e metalúrgico, entre outras.
Da profundidade de seu culto, diversas cidades da Europa adotaram nomes cuja origem significa cidade de Lugh ou dedicada a Lugh. É o caso de Lyon, Leyden e Lugo.
O Nascimento de Lugh.
Conta-se que os Fomore sempre existiram na Irlanda. Contemporâneos da terra, nasceram com a terra, e ali habitaram desde que o mundo passou a existir. Já a Irlanda existia, também os Fomore existiam. E só ali? Não sabemos, o que sabemos é que estavam ali. Eram enormes e deformados. Alguns tinham cabeça de cavalo, bode ou touro; outros tinham apenas um braço ou uma perna. Divindades escuras, portadoras dos poderes do mal e das trevas, filhos da escuridão e do abismo do mar, do caos e da noite. Uma raça cruel e violenta.
O mais terrível deles era Balor, cujo pai tinha cara de boi. Mas o que distinguia Balor era seu olho, temível olho, possuidor de um poder maligno capaz de matar quem se visse sob sua mira. Não foi a natureza de sua raça que o dotou desse olho mágico destruidor. Foi sua extrema curiosidade. Certo dia as feiticeiras de seu pai preparavam uma poção mágica. Saía do caldeirão fervente uma fumaça espessa de natureza mortal. Balor olhou bisbilhoteiro pela janela. A fumaça o atingiu e impregnou de sua força maligna um de seus olhos. Desde então adquiriu a capacidade de matar e transformar em pedra todo ser vivo a quem olhasse. Nem deus nem gigante podia escapar ao seu olho maligno. Os Fomore se reuniram para deliberar sobre o seu destino. O principal dilema que os perturbava era o perigo que Balor representava para a própria sobrevivência da raça. Não desejavam matá-lo, e, depois de muito ponderar, encontraram uma solução: Que ele mantenha sempre fechado seu olho mau para nossa própria paz! — disseram enfim apaziguados.
Sim, Balor viveria, decidiram, sob a rígida condição de que ele mantivesse seu olho maligno resguardado sob as pálpebras, de onde nunca podia revelar-se ao mundo nem aos Fomore. E foi assim que, embora tivesse dois olhos, era como se tivesse apenas um. Desde então passou a ser chamado Balor-do-Olho-Maligno.
Nem todos da raça Fomore tinham aparência monstruosa.
Euathan, um de seus chefes, era uma presença magnífica aos olhos, um príncipe da escuridão. Trajava um manto trançado de fios de ouro, preso com um broche também de ouro engastado com uma pedra preciosa que brilhava magnificamente. Sob o manto trazia sempre uma camisa toda em fios de ouro reluzentes. Suas lanças eram de prata engastada em cabo de bronze; sua espada tinha punho e prendedor de ouro.
Seu filho Bress não era menos belo. Nascera de seus amores furtivos com Eri, bela deusa da tribo de Danna, deuses de grande poder mágico que nesse tempo viviam nas cidadelas de Findias, Gorias, Murias e Falias, regiões ocultas onde ninguém podia chegar. Elathan veio secretamente pelo mar, tomou Eri, com ela se deitou e copulou. Ao partir, entregou-lhe um anel dizendo que não o desse a ninguém, salvo àquele em cujo dedo o anel se ajustasse com perfeição. Num futuro ainda distante, o possuidor da jóia viria ao seu encontro, disse e partiu. Cumprido o tempo, Eri deu à luz Bress. Apropriado nome, que significa “belo”. Ele cresceu e de tal modo sua beleza era impressionante, que passaram a dizer: “E um Bress” para referir a todo objeto cuja beleza sensibiliza o olhar. Seja homem, mulher, seja objeto material seja paisagem encantadora aos olhos. Esses deuses então vieram para Erin numa nuvem mágica, e ali passaram a habitar, e ainda hoje na Irlanda tudo que é belo recebe esse elogio nascido desse deus escuro engolfado na poeira da memória.
Entre os muitos dias havidos entre o povo Fomore, chegou aquele em que Balor-do-Olho-Maligno foi empossado rei. Nessa ocasião ouviu uma profecia: “Balor, Balor, o seu neto há de matá-lo!”
Ele procurou a solidão e se retirou para pensar em sua sina. Abriu seu olho maligno, e uma rajada fumarenta queimou o chão onde pisava. Recolheu de volta o olho entre as pálpebras: Aquieta, poção que me encheu de ira e desigualdade entre os meus. Esconde seu vítreo veneno nessa cova onde olho algum pode penetrar. Aquieta, furor! Tenho apenas uma filha, minha Ethlinn. Oh, Ethlinn, você, que era para gerar a minha descendência, está prometida a gerar a minha morte. O destino é impiedoso. Como de mim então nascerá o meu maior inimigo? Hei de desviar o censo dessa maldição!
Entreabriu rápido a pálpebra de seu olho mau, e, antes que dele escapasse a ira de seu veneno mortal, o trancou de volta no seu recinto escuro. Saiu apressado, foi ver a filha pela última vez, e dali foi prescrever suas determinações. Mandou construir uma torre no alto de uma escarpa na Ilha Tory, ali prendeu a filha e a exilou do convívio comum. Convocou doze guardiãs para a vigiar e impedir que os olhos de Ethlinn vissem homem, e mesmo evitar que soubesse que no mundo pudesse haver outro sexo além do seu. Nessa reclusão Ethlinn cresceu e tornou-se mulher de surpreendente beleza.
Aconteceu porém, que Kian, da tribo de Danna, tinha ama vaca mágica. Seu leite era tão abundante, que todos a ambicionavam. Para evitar que a roubassem, ele a guardava com estrita vigilância. Kian tinha dois irmãos, um chamava-se Kethen; o outro, Ku, era ferreiro, forjador de armas e artífice dos Danna. Balou ambicionou possuir a vaca mágica de Kian, e vivia espreitando o momento certo para roubá-la.
Balor viu o momento azado quando, espreitando Kian em sua faina, ouviu ele e seu irmão Kethen conversarem sobre as armas que Ku estava forjando para eles. Era preciso, diziam, levar à forja os melhores metais para que o irmão tivesse material adequado a armas invencíveis: Não posso deixar minha vaca à mercê da sorte, irmão, e convém que um de nós fique aqui para guardá-la. Vou eu levá-la e não se afaste daqui por nada, disse Kian.
Estava ali à mão a hora de obter a vaca almejada. Balor apareceu a Kethen sob a forma de um menino. Teceu intrigas dizendo a Kethen que tinha ouvido Kian e Ku planejarem usar o melhor metal para fabricação de suas armas e deixar o metal comum para a arma de Kethen.
Ele ficou furioso, deixou a vaca aos cuidados do falso menino e correu para a forja a fim de frustrar o plano dos irmãos. Constatou que fora enganado. Ao contrário do que tinha ouvido, Kian e Ku trabalhavam no melhor metal para a fabricação de sua arma, e nada havia neles que denunciasse a mínima intenção de fraude.
Kian, ao vê-lo ali em hora tão inoportuna, quis saber o que tinha sucedido a Kethen para abandonar sua vaca preciosa e ir ao encalço deles. Ele lhe contou tudo, cabisbaixo e envergonhado. Agora a coisa estava perdida, pois tinha deixado o menino mentiroso tomando conta da vaca. Kian levou as mãos à cabeça: Você foi leviano, irmão, certamente era Balor disfarçado. Ele levou minha vaca para a ilha Tory. Isso é irremediável, mas hei de me vingar.
Kian foi imediatamente buscar o conselho de Biroge, o druida:
Meu querido Kian, Balor pensa que pode reverter a ação do destino. Doze guardiãs vigiam sua filha em uma torre isolada para impedir que ela conheça homem. Não será difícil transpor essa vigilância. Ouça o que digo e me siga.
Biroge transmutou a aparência de Kian e, por antes mágicas, o levou transvertido de mulher através do mar. Chegaram à torre e se apresentaram para as guardiãs de Ethlinn como duas mulheres que tinham se lançado ao mar para fugir de raptores. Não sabiam onde estavam e pediram abrigo. Foram recebidas. Biroge encantou as guardiãs, de modo que ficassem em estado de dormência. Outro encantamento trouxe de volta pana Kian suas formas masculinas, fê-lo belo e desejável para uma moça que nunca tinha visto homem e o conduziu a jovem Ethlinn. Ela olhou admirada aquela figura masculina, e Biroge, com um vibrar de sua vara mágica, fez aflorar na jovem o desejo natural da vida que deseja criar vida. Como se há muito esperasse a vinda de um homem, Ethlinn recebeu aquele moço como a um deus, e o amou. Passaram toda a noite juntos no intimo entrelaçamento de seus corpos, ambos entregues ao amor, ele para vingar-se de Balon; ela porque sentia brotar no corpo todo o fervor de sua fertilidade feminil. Amaram-se férvidos, e, desejosos de reter o gozo do amor, Kian a atravessou com o fogo de seu Órgão viril nove vezes. Ao amanhecer, Biroge e Kian desapareceram subitamente do mesmo modo como tinham chegado. As guardiãs ouviram Ethlinn cortar que a noite lhe aparecera uma criatura muito diferente dela; tinha experimentado um entrelaçamento caloroso e delicioso de corpos. Ele a tinha atravessado com um órgão espesso e rijo, macio e aveludado. Ela sentiu que a vida e a morte vibravam nela simultaneamente e uma penetrante sensação de prazer lhe ficou impressa em todo o corpo e sentimentos. Nunca tinha suposto que tais coisas pudessem existir. As guardiãs, ao ouvirem esse rebato, adivinharam tudo e temeram a fúria de Balor. Trataram de convencer Ethlinn de que ela tivera um sonho e nada mais disseram sobre o assunto. Mas no devido tempo, Ethlinn deu à luz três meninos.
A notícia desse acontecimento chegou a Balor. Furioso, principalmente tomado de um temível medo, sentiu que novamente era preciso interpor sua mão para deter o curso dos acontecimentos. O destino teimava e lhe dizia que três crianças nascidas de sua estirpe vinham ao mundo, uma delas, qual das três, destinada a matá-lo? Mandou tirar as três crianças à mãe, levá-las ao profundo mar alto e afogá-las, a todas. Nem uma ficasse.
O homem encarregado dessa ordem tomou as crianças, enrolou-as juntas em um pano cuidadosamente preso com broches e as levou como se carregasse um saco. No momento que começou a deslizar pela enseada, um dos meninos moveu o braço e, por artes de magia, o broche que o prendia aos panos se desprendeu. A criança escorregou e caiu na pequena baia. O homem achou que ela morreria e a deixou para trás. As outras duas foram afogadas de acordo com a ordem de Balor. De volta, o mensageiro deu conta ao seu amo de que tudo fora cumprido, e Balor, contente e apaziguado, moveu seu olho perigoso sob as pálpebras.
O que Balor não podia adivinhar é que a negligência do homem tinha deixado a obra incompleta; o menino abandonado na baía tinha um outro destino entre os deuses Danna; matá-lo a ele, Balor, não passava de circunstância mínima relacionada com uma façanha maior que essa criança recém-nascida, fruto de sua estirpe, estava destinada a realizar. Nem artes mágicas nem bem planejados atentados tirariam a sua vida. Ela viveria e cumpriria o curso prescrito. Biroge, o druida, é quem veio recolher o menino caído na baia e levá-lo ao pai, Kian, que o recebeu contente de ver brotar de sua noite amorosa com Ethlinn aquele fruto continuador do fio de sua raça e estirpe. Consagrou a criança e lhe deu o nome de Lugh. Depois o entregou a Ku, o ferreiro, para criá-lo, ensinar-lhe o próprio oficio e tomá-lo hábil em todos os ofícios e artes.
O menino chegou à adolescência e os Danna o deixaram aos cuidados de Duacha, “O Escuro”, rei da Grande Campina, Terra dos Imortais, Terra da Eterna Felicidade, e ali longe da vista dos povos do mundo de cá viveu imperceptivelmente até tornar-se adulto. Entronado em todas as ciências e habilidades, obteve o conhecimento de tudo. Detinha os atributos solares do poder universal, que lhe davam a posse dos segredos de todas as artes, de toda a força e de todo o saber, conhecedor tanto da medicina terapêutica, quando da música e da poesia. Em breve, o povo da tribo de Danna veria chegar esse deus radiante de luz para coabitar com eles.
A Chegada de Lugh.
Enquanto os Fomore se reuniam em conselho, Nuada celebrava com os deuses em Tara, a capital da tribo de Danna, seu retomo ao trono. Estavam no auge da alegria, quando o porteiro entrou para anunciar que um estranho, vestido como rei, estava nos portões pedindo fosse recebido por Nuada. Tentou despedi—lo, mas o estranho insistia. Apresentou-lhe tal lista de talentos, que ele não teve mais palavras de recusa e vinha ali para anunciar a noticia da chegada desse formidável desconhecido.
Nuada e todos os demais festejaram a noticia: Diz-nos que argumentos ele apresentou em seu favor para ser recebido.
O porteiro desfiou a lista de virtudes que ouvira o desconhecido alardear: Ele é carpinteiro, ferreiro, harpista, poeta e contador de estórias, mágico, médico e um guerreiro renomado tanto por sua destreza e talento quanto por sua força; é artífice perfeito na arte do bronze e, resumindo, disse que sabe tudo que a ciência e o conhecimento podem produzir. É um Ildanna, pois se declara conhecedor de todas as coisas e mestre em todas as artes. Eu lhe disse que tínhamos mestres incomparáveis em todas as artes que ele mencionou. Nosso carpinteiro é o hábil Luchtainé, disse-Ihe; nosso ferreiro é Goibniu, e não ha melhor em toda Erin. Ogma, nosso guerreiro, é o maior dos campeões. Temos excelentes harpistas, poetas e contadores de estórias, inumeráveis mágicos e druidas. Credné é nosso artífice na arte do bronze; Diancecht é nosso médico. Todos possuidores de habilidades imbatíveis, de maneira que não precisamos de mais ninguém.
Ele não desistiu, e disse-me: Se é assim como diz, pergunte ao rei se ele tem um homem em sua corte que reúna sozinho a mestria em todas essas artes. Se ele tem junto de si um homem assim, partirei imediatamente, pois Tara não precisará de mim.
Diante disso, não pude mais interpor recusa, e estou aqui para anunciá-lo.
Qual é o seu nome, sua estirpe e de onde vem? — perguntou Nuada.
Chama—se Lugh. É filho de Kian, filho de Diancecht, e de Ethlinn, filha de Balor, conforme me declarou.
Nuada mandou trazer seu tabuleiro de xadrez e ordenou ao porteiro que trouxesse Lugh a sua presença.
O jovem entrou. Era belo como o sol, e todos admiraram sua radiância e esplendor. Nuada o convidou a sentar e jogar xadrez com ele. Lugh venceu a partida, e causou a admiração de todos com um inusitado e novo movimento de peças, que nomearam “Cerco de Lugh”.
Nuada, arrebatado de entusiasmo, o convidou para um salão interno e o fez sentar na “Cadeira dos Sábios”, reservada para homens de grande sabedoria.
Ogma, o campeão, demonstrou sua força. Havia ali uma enorme pedra retangular e plana, tão pesada, que para erguê-la eram necessárias quatro parelhas de bois. Ogma a arrastou e a levou para fora das portas. Lugh a arrastou de volta. A pedra era apenas uma parte de outra ainda maior que ficava fora do palácio. Lugh a levantou e a recolocou em seu lugar.
Pediram que ele tocasse harpa. Ele tocou o “som-que-adormece”. O rei e toda a corte adormeceram, e dormiram por vinte e quatro horas seguidas. Então ele tocou o “som-elegiaco” e todos começaram a chorar. Por último tocou o “som-do-regozijo”, e todos exultaram de alegria.
E foi assim que Lugh demonstrou suas imbatíveis habilidades, o poder de sua magia e sua radiância se imprimiu em todos os corações. Nuada, vendo todos esses talentos incomparáveis reunidos em um só deus, quis ter ao pé de si criatura tão valiosa, e o recebeu entre os seus. Tomou conselho com os seus pares e obteve de todos a mesma opinião: Mantenha Lugh na corte e faça-o sentar-se na “Cadeira dos Sábios” ao seu lado, disseram. E assim foi feito. Lugh passou a viver na tribo de Danna e ali ficou como um rei luminoso e mágico, conhecedor de todas as coisas.
Pouco tempo depois, novo acontecimento revolveu o destino da Tribo de Danna. Apesar de Bress ter sido destronado, os Fomore continuavam a reclamar dos Danna o tributo anual. Enviaram seus recolhedores de impostos, 81 ao todo, à Colina de Babr para recolher a taxa extorsiva. Ali os deuses tinham de vir para render submissão a seus pés e pagar o tributo.
Ficaram atônitos quando viram aproximar um grupo de cavaleiros majestosos, montados em belos cavalos e armados magnificamente. Um guerreiro luminoso, alto e belo, o rosto radiante como o sol, os guiava. Vinha montado no magnífico cavalo de Manannan Mac Lir, de Crinas Brilhantes, que cavalgava tanto em terra como no mar, com leveza e tão veloz como o vento. Vestia a cota de maIha de Manannan, cujas malhas nenhuma arma podia penetrar. O seu elmo ostentava três brilhantes reluzentes. Trazia nas mãos a espada poderosa de Manannan, que nunca falhava em seu golpe mortal. Bastava a vista dessa espada para os guerreiros recuarem fraquejados, toda a coragem perdida, aterrorizados diante da potente espada de que, sabiam, não podiam escapar.
Ele parecia o sol alvorecendo a manhã. Era o esplendor de seu semblante e fronte que assumia a feição de um sol assim alvorecente, e não podiam olhar seu rosto, tamanho o seu esplendor. Maravilha! Era Lugh, o novo deus-sol que chegava. Ele ergueu-se temível diante dos recolhedores de taxa, e gritou: É assim que esses demônios oprimem o povo de Danna? Avançou contra eles em fúria e matava um após outro. O sangue inundava o chão e já tinha matado setenta e dois quando recolheu a espada na bainha, voltou-se para os nove ainda vivos e disse-lhes: Voltem ao seu rei, narrem o que presenciaram aqui e lhe digam que o Povo de Danna não pagará mais tributos a tribo dos Fomore.
Trêmulos de medo do terrível poder e força de Lugh, partiram para seu reino de mãos vazias e arrasadas. Ali, diante de Balor e de todo o povo, narraram o que lhes tinha acontecido e declararam a mensagem que Lugh enviava ao rei.
Estavam reunidos em assembleia Elathan, o belo; Tethra e Indech, reis dos Fomore; Bress, rei deposto dos Danna; Cethlenn dos dentes curvos; Kethlend, esposa de Balor, e todos os principais guerreiros e druidas dos Fomore. Todos os habitantes do fundo do mar ficaram consternados diante da notícia malfazeja:
Quem é esse guerreiro de quem nunca ouvimos falar? — quis saber Balor, por debaixo de suas pálpebras fervia seu olho mau.
Seus campeões não sabiam dizer sobre Lugh. Kethbend, a rainha, foi quem revelou sua identidade: Sei quem é — disse a esposa de Balor. É o filho de nossa filha Ethlinn. Seu nome é Lugh e o chamam de Ildanna, pois é hábil em todas as artes. Dele falam as profecias que, ao seu aparecimento, não governaremos mais Erin. Nunca mais.
Balor estarreceu: Como pode ser filho de Ethlinn, nossa filha? Reneguei e matei os frutos de seu ventre! E como agora me falam de seu filho! Emergiu então das trevas de sua morte esse neto detestável de minha alma, meu inimigo, a quem chamam o Ildanna!
— disse só para si no silêncio agitado de sua consciência. Estremecia, e seu olho mau dançava convulsionado sob as pálpebras. Não pôde mais deliberar entre os seus. Fugiu da assembléia para aquietar seu olho convulso, pesar e medir bem medido o curso a que levava esse fatídico e inesperado ressurgimento de um inimigo, seu neto, que ele julgava liquidado.
Ah, a morte dos recolhedores de taxas significa que os Danna estão dispostos a nos fazer guerra, declarou Tethra, um de seus reis. O rei Balor embora ausente, entrou a debater ferreamente a questão e ficaram ali remoendo seus temas de guerra, planos e furor contra a tribo de Danna. Que fiquem, pois, engolfados no fervedouro de sua disputa, que assim lhes compraz estar. Nós agora vamos a outra parte.
Vemos que, em Erin, Lugh envia mensagens por todos os lugares da terra, convocando uma assembléia geral de toda a tribo Danna. Kian, filho de Diancecht e pai de Lugh, era um dos portadores dessa mensagem. Ocorreu que ele ia pela campina de Muirthemne, viu três guerreiros armados que se aproximavam. Reconheceu-os. Eram Brian, Ouchar e Iucharba, os três filhos de Turenn, filho de Ogma. Entre eles e Kian, seus irmãos Kethé e Ku, havia uma desavença pessoal. Kian, desacompanhado de seus irmãos, viu que não lhe era conveniente cruzar com aqueles inimigos: Se meus irmãos estivessem comigo poderia lutar, mas sozinho não me convém enfrentá-los. É melhor me ocultar.
Viu ao redor uma manada de porcos pastando na campina. Como deus, tinha a faculdade de mudar de forma. Girou sua vara mágica e se transformou em um porco, juntou-se ao bando na campina e começou a pastar no meio deles.
Ah, pena, os filhos ele Turenn já o tinham visto: O que aconteceu com o guerreiro que vinha em nossa direção há pouco? Perguntou Brian. Não sabemos o que foi feito dele, responderam os outros dois. Vocês não ficaram vigilantes como é preciso em tempo de guerra, disse Brian. Ele se transformou em um daqueles porcos que pastam na campina. Posso mesmo dizer que sei quem é esse guerreiro. É Kian, e vocês sabem que é nosso inimigo.
E uma pena que tenha buscado refúgio entre os porcos, pois pertencem a alguém dos Danna. Não nos é permitido atacá-los, e, mesmo que matemos todos, Kian pode escapar.
Brian novamente reprochou seus irmãos: Vocês são tolos, não conseguem distinguir um animal mágico de um natural. Vou lhes mostrar. Brandiu sua vara mágica, e os transformou em dois caçadores, velozes, assassinos cães, e os instigou contra os porcos.
Os cães mágicos logo encontraram o porco mágico, e o isolaram do bando. Brian atirou a lança e o feriu. O animal ferido correu para eles, e com voz humana gritou: Foi um mau ato esse que vocês praticaram. Sou Kian, filho de Diancecht, e devem me poupar.
Iuchar e Iucharba queriam poupar a vida de Kian, mas o feroz Brian jurou que, ainda que ele retornasse sete vezes à vida, sete vezes o mataria.
Se vai me matar, deixe-me retomar minha forma humana antes, pediu Klan.
Bom grado permito que retome sua forma humana, pois prefiro matar um homem a um porco.
Kian pronunciou a fórmula própria, seus disfarces caíram e ele ressurgiu: Sou um homem e isso o obriga a me poupar, disse.
Não, não obriga, respondeu Brian.
Então, ouçam bem. Será o pior dia de suas vidas, pois o resgate da vida de um porco não é o mesmo da vida de um homem. Se me matarem, digo-lhes, nunca houve nem nunca haverá resgate de sangue mais pesado do que pagarão por mim. Sua armas denunciarão a minha morte e sua autoria, completou.
Mas os filhos de Turenn não quiseram dar-lhe ouvidos. Evitaram as armas e o mataram com pedras e paus. Agrediram Kian atém do que é possível conceder a impiedade. Todo ele transformou-se em um corpo disforme, a pele esfolada, os músculos à mostra e cobertos por uma massa coagulada de sangue. Sepultaram-no e sobre a sepultura empilharam pedras até formar um bloco comprimido. A terra lançou horrorizada o corpo de volta. Voltaram a enterrá-lo. A terra lançou o corpo de volta. Seis vezes o enterraram e seis vezes a terra o devolveu. Só na sétima tentativa obtiveram êxito. Ali o deixaram e partiram para Tara.
As batalhas de Mag Tuireadh.
Os Tuatha travaram três grandes batalhas durante o tempo que estiveram sobre a terra. A primeira foi a Batalha de Mag Tuireadh (também conhecida por Moytura, a planície das torres), em que lutaram contra Fir Bolg pelo controle da Irlanda, e que se julga tenha tido lugar na região onde é hoje Connemara, do Condado de Galway. Os Fir Bold, ou «homens dos sacos» eram escravos que tinham vindo da Grécia e que eram forçados a transportar sacos de terra, os quais foram transformados em barcos que os levaram para a Irlanda. Este povo era de raciocínio lento e não representava qualquer desafio para os brilhantes rivais, os Tuatha Dé Danann, que não tardaram a expulsá-los. Nuada era o rei dos Tuatha Dé Danann que comandou a batalha contra Fir Bolg.
Embora possuísse uma espada mágica, o braço de Nuad foi decepado durante a batalha e o reino passou para Bres. Este correspondia à lei de Nuada que decretava que um rei não podia ter deficiências físicas. Mas Bres não era um monarca popular, em parte por ter sangue dos Fomoire e também porque cobrava taxas pesadas e não era muito simpático para os poetas e tocadores de harpa. Bres não teve um reinado muito prolongado, pois Nuada foi ajudado por Dian Cecht, o deus da cura, que lhe fez um braço de prata, devolvendo assim a saúde e, consequentemente, o trono ao rei. Foi-lhe dado o nome de Nuada Airget-Lam, ou «Nuada do braço de prata.» Os dons de Dian Cecht no respeitante a ervas medicinais também permitiram que muitos guerreiros curassem as feridas feitas no campo de batalha. Depois dos Fir Bolg terem sido derrotados, os Tuatha expulsaram-nos para as Ilhas Aran ao largo de Galway.
Lugh e a segunda batalha de Mag Tuireadh
Na segunda batalha, que é essencial para a mitologia irlandesa, os Tuatha Dé Danann continuavam a lutar pelo controle da terra, desta vez contra as forças assustadoras dos Fomoire. Estes são freqüentemente representados só com uma perna e um braço, e são monstros horríveis do mar, verdadeiramente maus e grotescos.
O rei do Fomoire era Balor, um ciclope repugnante com um olho diabólico, cujo mero olhar matava qualquer um que ficava pasmado a fixá-lo - um destino que atingiu Nuada, o rei dos Tuatha. Quando este morreu, o reino passou para o célebre Lugh.
Lugh, o Brilhante, era um deus Sol louvado pelos seus muitos talentos. Era um artesão, músico, poeta, feiticeiro guerreiro. Ele também era - isto é, transformou-se - o neto do diabólico fomoire Balor. Antes de Lugh ter nascido, tinha sido profetizado que Balor haveria de ser morto pelo neto. Este bem tentou libertar-se de Lugh mas sem sucesso, pois o deus Sol estava protegido com encantos muito poderosos.
Depois da morte de Nuada, Lugh encarregou-se da tarefa de exterminar o monstro do olho diabólico. Quando Balor caiu a dormir, Lugh atirou-lhe uma pedra com a funda encantada, atingindo-o com tal força que o olho do monstro lhe saiu pela parte de trás da cabeça, pelo que a maldição do olhar caía sobre o seu próprio exército. Balor foi morto e os Fomoire regressaram ao mar. A Lugh foi dado o título de Lugh Lamfhada («Lugh do longo braço»), e o festival de verão das colheitas, Lughnasa (1 de agosto), recebeu este nome em sua honra.
Morrigan, a deusa da guerra e da fertilidade, auxiliou os Tuatha Dé Danann nas suas batalhas contra os Fir Bolg e os Fomoire, quer pegando em armas, quer transformando-se em um corvo para atemorizar o inimigo.
A derrota dos Tuatha dé Danann
A terceira e última batalha dos Tuatha ficou ligada à chegada dos Milesianos à costa sudoeste da Irlanda, na festa de Beltaine no ano 1000 a.e.c.
Também conhecidos com os Filhos de Milé, vinham da Espanha e dizia-se que descendiam da figura bíblica Noé e de antepassados dos irlandeses da época. Também lhes era dado o nome do país, Eriu.
Quando os Tuatha Dé Danann viram os Milesianos a aproximar-se da linha de costa da Irlanda, enviaram um vento mágico, tentando assim afastá-los para longe. Mas os Milesianos tinham as suas magias vitais, na forma do poeta Amhairghin, que serenava o vento com o seu canto, pelo que os invasores puderam desembarcar. Cantava ele:
Sou um estuário que entro no mar.
Sou uma onda no oceano.
Sou o som do mar.
Sou um touro potente,
Sou um falcão numa escarpa.
Sou uma gota de orvalho ao Sol.
Na batalha de Teltown no Condado Meath, os Milesianos derrotaram os Tuatha Dé Danann com as suas ótimas armas de ferro.
Não pretendendo cair sem lutar, os Tuatha lançaram uma praga para que as searas dos Milesianos fossem destruídas. Estes ficaram tão impressionados com as proezas mágicas dos Tuatha que decidiram chegar a um acordo. Permitiriam que o povo de Danu descesse abaixo da terra e ocupasse os montículos e elevações fúnebres (sidhé). Outros Tuatha partiram para Tir Na Nog, a terra da eterna juventude.
Houve alguns que foram transformados em fadas que pressagiavam a morte (bean sidhe, ou seja «mulher das fábulas»). Estas tanto se podiam manifestar como jovens donzelas ou como velhas bruxas, ambas com longas tranças e olhos vermelhos de chorarem.
Quando estas feiticeiras apareciam, criava-se sempre um ambiente assustador, pois acontecia pouco antes da morte de alguém, que elas acompanhavam com lamentos e queixumes numa estranha linguagem.
O talentoso e bonito deus Sol, Lugh, desceu ao mundo dos mortos e tornou-se num artesão, passando a ser chamado de «o pequeno Lugh arqueado» ou Luchorpain. Os companheiros eram conhecidos por leprechauns e são representados no folclore como trapaceiros, sapateiros e guardadores de tesouros e de potes de ouro.
E foi assim que o poderoso e magnífico povo Tuatha Dé Danann se tornou em personagens fantásticas da mitologia irlandesa, que ocasionalmente passam breves momentos acima do solo nas alturas em que é levantado o véu entre o Além e o mundo dos vivos, como sucede no Samain e Beltaine.
Ele descende de uma linhagem mista — Tuatha e Fomore —, mas foi com sua imprescindível ajuda que os primeiros conseguiram derrotar os segundos. Sua mãe é Tailtiu, a própria Irlanda. Ele é o guerreiro mais completo de toda a ilha, pois sua habilidade com as armas se une a maestria em diversas atividades, como ferreiro, carpinteiro, poeta, historiador, estrategista militar, artista, druida, médico e metalúrgico, entre outras.
Da profundidade de seu culto, diversas cidades da Europa adotaram nomes cuja origem significa cidade de Lugh ou dedicada a Lugh. É o caso de Lyon, Leyden e Lugo.
O Nascimento de Lugh.
Conta-se que os Fomore sempre existiram na Irlanda. Contemporâneos da terra, nasceram com a terra, e ali habitaram desde que o mundo passou a existir. Já a Irlanda existia, também os Fomore existiam. E só ali? Não sabemos, o que sabemos é que estavam ali. Eram enormes e deformados. Alguns tinham cabeça de cavalo, bode ou touro; outros tinham apenas um braço ou uma perna. Divindades escuras, portadoras dos poderes do mal e das trevas, filhos da escuridão e do abismo do mar, do caos e da noite. Uma raça cruel e violenta.
O mais terrível deles era Balor, cujo pai tinha cara de boi. Mas o que distinguia Balor era seu olho, temível olho, possuidor de um poder maligno capaz de matar quem se visse sob sua mira. Não foi a natureza de sua raça que o dotou desse olho mágico destruidor. Foi sua extrema curiosidade. Certo dia as feiticeiras de seu pai preparavam uma poção mágica. Saía do caldeirão fervente uma fumaça espessa de natureza mortal. Balor olhou bisbilhoteiro pela janela. A fumaça o atingiu e impregnou de sua força maligna um de seus olhos. Desde então adquiriu a capacidade de matar e transformar em pedra todo ser vivo a quem olhasse. Nem deus nem gigante podia escapar ao seu olho maligno. Os Fomore se reuniram para deliberar sobre o seu destino. O principal dilema que os perturbava era o perigo que Balor representava para a própria sobrevivência da raça. Não desejavam matá-lo, e, depois de muito ponderar, encontraram uma solução: Que ele mantenha sempre fechado seu olho mau para nossa própria paz! — disseram enfim apaziguados.
Sim, Balor viveria, decidiram, sob a rígida condição de que ele mantivesse seu olho maligno resguardado sob as pálpebras, de onde nunca podia revelar-se ao mundo nem aos Fomore. E foi assim que, embora tivesse dois olhos, era como se tivesse apenas um. Desde então passou a ser chamado Balor-do-Olho-Maligno.
Nem todos da raça Fomore tinham aparência monstruosa.
Euathan, um de seus chefes, era uma presença magnífica aos olhos, um príncipe da escuridão. Trajava um manto trançado de fios de ouro, preso com um broche também de ouro engastado com uma pedra preciosa que brilhava magnificamente. Sob o manto trazia sempre uma camisa toda em fios de ouro reluzentes. Suas lanças eram de prata engastada em cabo de bronze; sua espada tinha punho e prendedor de ouro.
Seu filho Bress não era menos belo. Nascera de seus amores furtivos com Eri, bela deusa da tribo de Danna, deuses de grande poder mágico que nesse tempo viviam nas cidadelas de Findias, Gorias, Murias e Falias, regiões ocultas onde ninguém podia chegar. Elathan veio secretamente pelo mar, tomou Eri, com ela se deitou e copulou. Ao partir, entregou-lhe um anel dizendo que não o desse a ninguém, salvo àquele em cujo dedo o anel se ajustasse com perfeição. Num futuro ainda distante, o possuidor da jóia viria ao seu encontro, disse e partiu. Cumprido o tempo, Eri deu à luz Bress. Apropriado nome, que significa “belo”. Ele cresceu e de tal modo sua beleza era impressionante, que passaram a dizer: “E um Bress” para referir a todo objeto cuja beleza sensibiliza o olhar. Seja homem, mulher, seja objeto material seja paisagem encantadora aos olhos. Esses deuses então vieram para Erin numa nuvem mágica, e ali passaram a habitar, e ainda hoje na Irlanda tudo que é belo recebe esse elogio nascido desse deus escuro engolfado na poeira da memória.
Entre os muitos dias havidos entre o povo Fomore, chegou aquele em que Balor-do-Olho-Maligno foi empossado rei. Nessa ocasião ouviu uma profecia: “Balor, Balor, o seu neto há de matá-lo!”
Ele procurou a solidão e se retirou para pensar em sua sina. Abriu seu olho maligno, e uma rajada fumarenta queimou o chão onde pisava. Recolheu de volta o olho entre as pálpebras: Aquieta, poção que me encheu de ira e desigualdade entre os meus. Esconde seu vítreo veneno nessa cova onde olho algum pode penetrar. Aquieta, furor! Tenho apenas uma filha, minha Ethlinn. Oh, Ethlinn, você, que era para gerar a minha descendência, está prometida a gerar a minha morte. O destino é impiedoso. Como de mim então nascerá o meu maior inimigo? Hei de desviar o censo dessa maldição!
Entreabriu rápido a pálpebra de seu olho mau, e, antes que dele escapasse a ira de seu veneno mortal, o trancou de volta no seu recinto escuro. Saiu apressado, foi ver a filha pela última vez, e dali foi prescrever suas determinações. Mandou construir uma torre no alto de uma escarpa na Ilha Tory, ali prendeu a filha e a exilou do convívio comum. Convocou doze guardiãs para a vigiar e impedir que os olhos de Ethlinn vissem homem, e mesmo evitar que soubesse que no mundo pudesse haver outro sexo além do seu. Nessa reclusão Ethlinn cresceu e tornou-se mulher de surpreendente beleza.
Aconteceu porém, que Kian, da tribo de Danna, tinha ama vaca mágica. Seu leite era tão abundante, que todos a ambicionavam. Para evitar que a roubassem, ele a guardava com estrita vigilância. Kian tinha dois irmãos, um chamava-se Kethen; o outro, Ku, era ferreiro, forjador de armas e artífice dos Danna. Balou ambicionou possuir a vaca mágica de Kian, e vivia espreitando o momento certo para roubá-la.
Balor viu o momento azado quando, espreitando Kian em sua faina, ouviu ele e seu irmão Kethen conversarem sobre as armas que Ku estava forjando para eles. Era preciso, diziam, levar à forja os melhores metais para que o irmão tivesse material adequado a armas invencíveis: Não posso deixar minha vaca à mercê da sorte, irmão, e convém que um de nós fique aqui para guardá-la. Vou eu levá-la e não se afaste daqui por nada, disse Kian.
Estava ali à mão a hora de obter a vaca almejada. Balor apareceu a Kethen sob a forma de um menino. Teceu intrigas dizendo a Kethen que tinha ouvido Kian e Ku planejarem usar o melhor metal para fabricação de suas armas e deixar o metal comum para a arma de Kethen.
Ele ficou furioso, deixou a vaca aos cuidados do falso menino e correu para a forja a fim de frustrar o plano dos irmãos. Constatou que fora enganado. Ao contrário do que tinha ouvido, Kian e Ku trabalhavam no melhor metal para a fabricação de sua arma, e nada havia neles que denunciasse a mínima intenção de fraude.
Kian, ao vê-lo ali em hora tão inoportuna, quis saber o que tinha sucedido a Kethen para abandonar sua vaca preciosa e ir ao encalço deles. Ele lhe contou tudo, cabisbaixo e envergonhado. Agora a coisa estava perdida, pois tinha deixado o menino mentiroso tomando conta da vaca. Kian levou as mãos à cabeça: Você foi leviano, irmão, certamente era Balor disfarçado. Ele levou minha vaca para a ilha Tory. Isso é irremediável, mas hei de me vingar.
Kian foi imediatamente buscar o conselho de Biroge, o druida:
Meu querido Kian, Balor pensa que pode reverter a ação do destino. Doze guardiãs vigiam sua filha em uma torre isolada para impedir que ela conheça homem. Não será difícil transpor essa vigilância. Ouça o que digo e me siga.
Biroge transmutou a aparência de Kian e, por antes mágicas, o levou transvertido de mulher através do mar. Chegaram à torre e se apresentaram para as guardiãs de Ethlinn como duas mulheres que tinham se lançado ao mar para fugir de raptores. Não sabiam onde estavam e pediram abrigo. Foram recebidas. Biroge encantou as guardiãs, de modo que ficassem em estado de dormência. Outro encantamento trouxe de volta pana Kian suas formas masculinas, fê-lo belo e desejável para uma moça que nunca tinha visto homem e o conduziu a jovem Ethlinn. Ela olhou admirada aquela figura masculina, e Biroge, com um vibrar de sua vara mágica, fez aflorar na jovem o desejo natural da vida que deseja criar vida. Como se há muito esperasse a vinda de um homem, Ethlinn recebeu aquele moço como a um deus, e o amou. Passaram toda a noite juntos no intimo entrelaçamento de seus corpos, ambos entregues ao amor, ele para vingar-se de Balon; ela porque sentia brotar no corpo todo o fervor de sua fertilidade feminil. Amaram-se férvidos, e, desejosos de reter o gozo do amor, Kian a atravessou com o fogo de seu Órgão viril nove vezes. Ao amanhecer, Biroge e Kian desapareceram subitamente do mesmo modo como tinham chegado. As guardiãs ouviram Ethlinn cortar que a noite lhe aparecera uma criatura muito diferente dela; tinha experimentado um entrelaçamento caloroso e delicioso de corpos. Ele a tinha atravessado com um órgão espesso e rijo, macio e aveludado. Ela sentiu que a vida e a morte vibravam nela simultaneamente e uma penetrante sensação de prazer lhe ficou impressa em todo o corpo e sentimentos. Nunca tinha suposto que tais coisas pudessem existir. As guardiãs, ao ouvirem esse rebato, adivinharam tudo e temeram a fúria de Balor. Trataram de convencer Ethlinn de que ela tivera um sonho e nada mais disseram sobre o assunto. Mas no devido tempo, Ethlinn deu à luz três meninos.
A notícia desse acontecimento chegou a Balor. Furioso, principalmente tomado de um temível medo, sentiu que novamente era preciso interpor sua mão para deter o curso dos acontecimentos. O destino teimava e lhe dizia que três crianças nascidas de sua estirpe vinham ao mundo, uma delas, qual das três, destinada a matá-lo? Mandou tirar as três crianças à mãe, levá-las ao profundo mar alto e afogá-las, a todas. Nem uma ficasse.
O homem encarregado dessa ordem tomou as crianças, enrolou-as juntas em um pano cuidadosamente preso com broches e as levou como se carregasse um saco. No momento que começou a deslizar pela enseada, um dos meninos moveu o braço e, por artes de magia, o broche que o prendia aos panos se desprendeu. A criança escorregou e caiu na pequena baia. O homem achou que ela morreria e a deixou para trás. As outras duas foram afogadas de acordo com a ordem de Balor. De volta, o mensageiro deu conta ao seu amo de que tudo fora cumprido, e Balor, contente e apaziguado, moveu seu olho perigoso sob as pálpebras.
O que Balor não podia adivinhar é que a negligência do homem tinha deixado a obra incompleta; o menino abandonado na baía tinha um outro destino entre os deuses Danna; matá-lo a ele, Balor, não passava de circunstância mínima relacionada com uma façanha maior que essa criança recém-nascida, fruto de sua estirpe, estava destinada a realizar. Nem artes mágicas nem bem planejados atentados tirariam a sua vida. Ela viveria e cumpriria o curso prescrito. Biroge, o druida, é quem veio recolher o menino caído na baia e levá-lo ao pai, Kian, que o recebeu contente de ver brotar de sua noite amorosa com Ethlinn aquele fruto continuador do fio de sua raça e estirpe. Consagrou a criança e lhe deu o nome de Lugh. Depois o entregou a Ku, o ferreiro, para criá-lo, ensinar-lhe o próprio oficio e tomá-lo hábil em todos os ofícios e artes.
O menino chegou à adolescência e os Danna o deixaram aos cuidados de Duacha, “O Escuro”, rei da Grande Campina, Terra dos Imortais, Terra da Eterna Felicidade, e ali longe da vista dos povos do mundo de cá viveu imperceptivelmente até tornar-se adulto. Entronado em todas as ciências e habilidades, obteve o conhecimento de tudo. Detinha os atributos solares do poder universal, que lhe davam a posse dos segredos de todas as artes, de toda a força e de todo o saber, conhecedor tanto da medicina terapêutica, quando da música e da poesia. Em breve, o povo da tribo de Danna veria chegar esse deus radiante de luz para coabitar com eles.
A Chegada de Lugh.
Enquanto os Fomore se reuniam em conselho, Nuada celebrava com os deuses em Tara, a capital da tribo de Danna, seu retomo ao trono. Estavam no auge da alegria, quando o porteiro entrou para anunciar que um estranho, vestido como rei, estava nos portões pedindo fosse recebido por Nuada. Tentou despedi—lo, mas o estranho insistia. Apresentou-lhe tal lista de talentos, que ele não teve mais palavras de recusa e vinha ali para anunciar a noticia da chegada desse formidável desconhecido.
Nuada e todos os demais festejaram a noticia: Diz-nos que argumentos ele apresentou em seu favor para ser recebido.
O porteiro desfiou a lista de virtudes que ouvira o desconhecido alardear: Ele é carpinteiro, ferreiro, harpista, poeta e contador de estórias, mágico, médico e um guerreiro renomado tanto por sua destreza e talento quanto por sua força; é artífice perfeito na arte do bronze e, resumindo, disse que sabe tudo que a ciência e o conhecimento podem produzir. É um Ildanna, pois se declara conhecedor de todas as coisas e mestre em todas as artes. Eu lhe disse que tínhamos mestres incomparáveis em todas as artes que ele mencionou. Nosso carpinteiro é o hábil Luchtainé, disse-Ihe; nosso ferreiro é Goibniu, e não ha melhor em toda Erin. Ogma, nosso guerreiro, é o maior dos campeões. Temos excelentes harpistas, poetas e contadores de estórias, inumeráveis mágicos e druidas. Credné é nosso artífice na arte do bronze; Diancecht é nosso médico. Todos possuidores de habilidades imbatíveis, de maneira que não precisamos de mais ninguém.
Ele não desistiu, e disse-me: Se é assim como diz, pergunte ao rei se ele tem um homem em sua corte que reúna sozinho a mestria em todas essas artes. Se ele tem junto de si um homem assim, partirei imediatamente, pois Tara não precisará de mim.
Diante disso, não pude mais interpor recusa, e estou aqui para anunciá-lo.
Qual é o seu nome, sua estirpe e de onde vem? — perguntou Nuada.
Chama—se Lugh. É filho de Kian, filho de Diancecht, e de Ethlinn, filha de Balor, conforme me declarou.
Nuada mandou trazer seu tabuleiro de xadrez e ordenou ao porteiro que trouxesse Lugh a sua presença.
O jovem entrou. Era belo como o sol, e todos admiraram sua radiância e esplendor. Nuada o convidou a sentar e jogar xadrez com ele. Lugh venceu a partida, e causou a admiração de todos com um inusitado e novo movimento de peças, que nomearam “Cerco de Lugh”.
Nuada, arrebatado de entusiasmo, o convidou para um salão interno e o fez sentar na “Cadeira dos Sábios”, reservada para homens de grande sabedoria.
Ogma, o campeão, demonstrou sua força. Havia ali uma enorme pedra retangular e plana, tão pesada, que para erguê-la eram necessárias quatro parelhas de bois. Ogma a arrastou e a levou para fora das portas. Lugh a arrastou de volta. A pedra era apenas uma parte de outra ainda maior que ficava fora do palácio. Lugh a levantou e a recolocou em seu lugar.
Pediram que ele tocasse harpa. Ele tocou o “som-que-adormece”. O rei e toda a corte adormeceram, e dormiram por vinte e quatro horas seguidas. Então ele tocou o “som-elegiaco” e todos começaram a chorar. Por último tocou o “som-do-regozijo”, e todos exultaram de alegria.
E foi assim que Lugh demonstrou suas imbatíveis habilidades, o poder de sua magia e sua radiância se imprimiu em todos os corações. Nuada, vendo todos esses talentos incomparáveis reunidos em um só deus, quis ter ao pé de si criatura tão valiosa, e o recebeu entre os seus. Tomou conselho com os seus pares e obteve de todos a mesma opinião: Mantenha Lugh na corte e faça-o sentar-se na “Cadeira dos Sábios” ao seu lado, disseram. E assim foi feito. Lugh passou a viver na tribo de Danna e ali ficou como um rei luminoso e mágico, conhecedor de todas as coisas.
Pouco tempo depois, novo acontecimento revolveu o destino da Tribo de Danna. Apesar de Bress ter sido destronado, os Fomore continuavam a reclamar dos Danna o tributo anual. Enviaram seus recolhedores de impostos, 81 ao todo, à Colina de Babr para recolher a taxa extorsiva. Ali os deuses tinham de vir para render submissão a seus pés e pagar o tributo.
Ficaram atônitos quando viram aproximar um grupo de cavaleiros majestosos, montados em belos cavalos e armados magnificamente. Um guerreiro luminoso, alto e belo, o rosto radiante como o sol, os guiava. Vinha montado no magnífico cavalo de Manannan Mac Lir, de Crinas Brilhantes, que cavalgava tanto em terra como no mar, com leveza e tão veloz como o vento. Vestia a cota de maIha de Manannan, cujas malhas nenhuma arma podia penetrar. O seu elmo ostentava três brilhantes reluzentes. Trazia nas mãos a espada poderosa de Manannan, que nunca falhava em seu golpe mortal. Bastava a vista dessa espada para os guerreiros recuarem fraquejados, toda a coragem perdida, aterrorizados diante da potente espada de que, sabiam, não podiam escapar.
Ele parecia o sol alvorecendo a manhã. Era o esplendor de seu semblante e fronte que assumia a feição de um sol assim alvorecente, e não podiam olhar seu rosto, tamanho o seu esplendor. Maravilha! Era Lugh, o novo deus-sol que chegava. Ele ergueu-se temível diante dos recolhedores de taxa, e gritou: É assim que esses demônios oprimem o povo de Danna? Avançou contra eles em fúria e matava um após outro. O sangue inundava o chão e já tinha matado setenta e dois quando recolheu a espada na bainha, voltou-se para os nove ainda vivos e disse-lhes: Voltem ao seu rei, narrem o que presenciaram aqui e lhe digam que o Povo de Danna não pagará mais tributos a tribo dos Fomore.
Trêmulos de medo do terrível poder e força de Lugh, partiram para seu reino de mãos vazias e arrasadas. Ali, diante de Balor e de todo o povo, narraram o que lhes tinha acontecido e declararam a mensagem que Lugh enviava ao rei.
Estavam reunidos em assembleia Elathan, o belo; Tethra e Indech, reis dos Fomore; Bress, rei deposto dos Danna; Cethlenn dos dentes curvos; Kethlend, esposa de Balor, e todos os principais guerreiros e druidas dos Fomore. Todos os habitantes do fundo do mar ficaram consternados diante da notícia malfazeja:
Quem é esse guerreiro de quem nunca ouvimos falar? — quis saber Balor, por debaixo de suas pálpebras fervia seu olho mau.
Seus campeões não sabiam dizer sobre Lugh. Kethbend, a rainha, foi quem revelou sua identidade: Sei quem é — disse a esposa de Balor. É o filho de nossa filha Ethlinn. Seu nome é Lugh e o chamam de Ildanna, pois é hábil em todas as artes. Dele falam as profecias que, ao seu aparecimento, não governaremos mais Erin. Nunca mais.
Balor estarreceu: Como pode ser filho de Ethlinn, nossa filha? Reneguei e matei os frutos de seu ventre! E como agora me falam de seu filho! Emergiu então das trevas de sua morte esse neto detestável de minha alma, meu inimigo, a quem chamam o Ildanna!
— disse só para si no silêncio agitado de sua consciência. Estremecia, e seu olho mau dançava convulsionado sob as pálpebras. Não pôde mais deliberar entre os seus. Fugiu da assembléia para aquietar seu olho convulso, pesar e medir bem medido o curso a que levava esse fatídico e inesperado ressurgimento de um inimigo, seu neto, que ele julgava liquidado.
Ah, a morte dos recolhedores de taxas significa que os Danna estão dispostos a nos fazer guerra, declarou Tethra, um de seus reis. O rei Balor embora ausente, entrou a debater ferreamente a questão e ficaram ali remoendo seus temas de guerra, planos e furor contra a tribo de Danna. Que fiquem, pois, engolfados no fervedouro de sua disputa, que assim lhes compraz estar. Nós agora vamos a outra parte.
Vemos que, em Erin, Lugh envia mensagens por todos os lugares da terra, convocando uma assembléia geral de toda a tribo Danna. Kian, filho de Diancecht e pai de Lugh, era um dos portadores dessa mensagem. Ocorreu que ele ia pela campina de Muirthemne, viu três guerreiros armados que se aproximavam. Reconheceu-os. Eram Brian, Ouchar e Iucharba, os três filhos de Turenn, filho de Ogma. Entre eles e Kian, seus irmãos Kethé e Ku, havia uma desavença pessoal. Kian, desacompanhado de seus irmãos, viu que não lhe era conveniente cruzar com aqueles inimigos: Se meus irmãos estivessem comigo poderia lutar, mas sozinho não me convém enfrentá-los. É melhor me ocultar.
Viu ao redor uma manada de porcos pastando na campina. Como deus, tinha a faculdade de mudar de forma. Girou sua vara mágica e se transformou em um porco, juntou-se ao bando na campina e começou a pastar no meio deles.
Ah, pena, os filhos ele Turenn já o tinham visto: O que aconteceu com o guerreiro que vinha em nossa direção há pouco? Perguntou Brian. Não sabemos o que foi feito dele, responderam os outros dois. Vocês não ficaram vigilantes como é preciso em tempo de guerra, disse Brian. Ele se transformou em um daqueles porcos que pastam na campina. Posso mesmo dizer que sei quem é esse guerreiro. É Kian, e vocês sabem que é nosso inimigo.
E uma pena que tenha buscado refúgio entre os porcos, pois pertencem a alguém dos Danna. Não nos é permitido atacá-los, e, mesmo que matemos todos, Kian pode escapar.
Brian novamente reprochou seus irmãos: Vocês são tolos, não conseguem distinguir um animal mágico de um natural. Vou lhes mostrar. Brandiu sua vara mágica, e os transformou em dois caçadores, velozes, assassinos cães, e os instigou contra os porcos.
Os cães mágicos logo encontraram o porco mágico, e o isolaram do bando. Brian atirou a lança e o feriu. O animal ferido correu para eles, e com voz humana gritou: Foi um mau ato esse que vocês praticaram. Sou Kian, filho de Diancecht, e devem me poupar.
Iuchar e Iucharba queriam poupar a vida de Kian, mas o feroz Brian jurou que, ainda que ele retornasse sete vezes à vida, sete vezes o mataria.
Se vai me matar, deixe-me retomar minha forma humana antes, pediu Klan.
Bom grado permito que retome sua forma humana, pois prefiro matar um homem a um porco.
Kian pronunciou a fórmula própria, seus disfarces caíram e ele ressurgiu: Sou um homem e isso o obriga a me poupar, disse.
Não, não obriga, respondeu Brian.
Então, ouçam bem. Será o pior dia de suas vidas, pois o resgate da vida de um porco não é o mesmo da vida de um homem. Se me matarem, digo-lhes, nunca houve nem nunca haverá resgate de sangue mais pesado do que pagarão por mim. Sua armas denunciarão a minha morte e sua autoria, completou.
Mas os filhos de Turenn não quiseram dar-lhe ouvidos. Evitaram as armas e o mataram com pedras e paus. Agrediram Kian atém do que é possível conceder a impiedade. Todo ele transformou-se em um corpo disforme, a pele esfolada, os músculos à mostra e cobertos por uma massa coagulada de sangue. Sepultaram-no e sobre a sepultura empilharam pedras até formar um bloco comprimido. A terra lançou horrorizada o corpo de volta. Voltaram a enterrá-lo. A terra lançou o corpo de volta. Seis vezes o enterraram e seis vezes a terra o devolveu. Só na sétima tentativa obtiveram êxito. Ali o deixaram e partiram para Tara.
As batalhas de Mag Tuireadh.
Os Tuatha travaram três grandes batalhas durante o tempo que estiveram sobre a terra. A primeira foi a Batalha de Mag Tuireadh (também conhecida por Moytura, a planície das torres), em que lutaram contra Fir Bolg pelo controle da Irlanda, e que se julga tenha tido lugar na região onde é hoje Connemara, do Condado de Galway. Os Fir Bold, ou «homens dos sacos» eram escravos que tinham vindo da Grécia e que eram forçados a transportar sacos de terra, os quais foram transformados em barcos que os levaram para a Irlanda. Este povo era de raciocínio lento e não representava qualquer desafio para os brilhantes rivais, os Tuatha Dé Danann, que não tardaram a expulsá-los. Nuada era o rei dos Tuatha Dé Danann que comandou a batalha contra Fir Bolg.
Embora possuísse uma espada mágica, o braço de Nuad foi decepado durante a batalha e o reino passou para Bres. Este correspondia à lei de Nuada que decretava que um rei não podia ter deficiências físicas. Mas Bres não era um monarca popular, em parte por ter sangue dos Fomoire e também porque cobrava taxas pesadas e não era muito simpático para os poetas e tocadores de harpa. Bres não teve um reinado muito prolongado, pois Nuada foi ajudado por Dian Cecht, o deus da cura, que lhe fez um braço de prata, devolvendo assim a saúde e, consequentemente, o trono ao rei. Foi-lhe dado o nome de Nuada Airget-Lam, ou «Nuada do braço de prata.» Os dons de Dian Cecht no respeitante a ervas medicinais também permitiram que muitos guerreiros curassem as feridas feitas no campo de batalha. Depois dos Fir Bolg terem sido derrotados, os Tuatha expulsaram-nos para as Ilhas Aran ao largo de Galway.
Lugh e a segunda batalha de Mag Tuireadh
Na segunda batalha, que é essencial para a mitologia irlandesa, os Tuatha Dé Danann continuavam a lutar pelo controle da terra, desta vez contra as forças assustadoras dos Fomoire. Estes são freqüentemente representados só com uma perna e um braço, e são monstros horríveis do mar, verdadeiramente maus e grotescos.
O rei do Fomoire era Balor, um ciclope repugnante com um olho diabólico, cujo mero olhar matava qualquer um que ficava pasmado a fixá-lo - um destino que atingiu Nuada, o rei dos Tuatha. Quando este morreu, o reino passou para o célebre Lugh.
Lugh, o Brilhante, era um deus Sol louvado pelos seus muitos talentos. Era um artesão, músico, poeta, feiticeiro guerreiro. Ele também era - isto é, transformou-se - o neto do diabólico fomoire Balor. Antes de Lugh ter nascido, tinha sido profetizado que Balor haveria de ser morto pelo neto. Este bem tentou libertar-se de Lugh mas sem sucesso, pois o deus Sol estava protegido com encantos muito poderosos.
Depois da morte de Nuada, Lugh encarregou-se da tarefa de exterminar o monstro do olho diabólico. Quando Balor caiu a dormir, Lugh atirou-lhe uma pedra com a funda encantada, atingindo-o com tal força que o olho do monstro lhe saiu pela parte de trás da cabeça, pelo que a maldição do olhar caía sobre o seu próprio exército. Balor foi morto e os Fomoire regressaram ao mar. A Lugh foi dado o título de Lugh Lamfhada («Lugh do longo braço»), e o festival de verão das colheitas, Lughnasa (1 de agosto), recebeu este nome em sua honra.
Morrigan, a deusa da guerra e da fertilidade, auxiliou os Tuatha Dé Danann nas suas batalhas contra os Fir Bolg e os Fomoire, quer pegando em armas, quer transformando-se em um corvo para atemorizar o inimigo.
A derrota dos Tuatha dé Danann
A terceira e última batalha dos Tuatha ficou ligada à chegada dos Milesianos à costa sudoeste da Irlanda, na festa de Beltaine no ano 1000 a.e.c.
Também conhecidos com os Filhos de Milé, vinham da Espanha e dizia-se que descendiam da figura bíblica Noé e de antepassados dos irlandeses da época. Também lhes era dado o nome do país, Eriu.
Quando os Tuatha Dé Danann viram os Milesianos a aproximar-se da linha de costa da Irlanda, enviaram um vento mágico, tentando assim afastá-los para longe. Mas os Milesianos tinham as suas magias vitais, na forma do poeta Amhairghin, que serenava o vento com o seu canto, pelo que os invasores puderam desembarcar. Cantava ele:
Sou um estuário que entro no mar.
Sou uma onda no oceano.
Sou o som do mar.
Sou um touro potente,
Sou um falcão numa escarpa.
Sou uma gota de orvalho ao Sol.
Na batalha de Teltown no Condado Meath, os Milesianos derrotaram os Tuatha Dé Danann com as suas ótimas armas de ferro.
Não pretendendo cair sem lutar, os Tuatha lançaram uma praga para que as searas dos Milesianos fossem destruídas. Estes ficaram tão impressionados com as proezas mágicas dos Tuatha que decidiram chegar a um acordo. Permitiriam que o povo de Danu descesse abaixo da terra e ocupasse os montículos e elevações fúnebres (sidhé). Outros Tuatha partiram para Tir Na Nog, a terra da eterna juventude.
Houve alguns que foram transformados em fadas que pressagiavam a morte (bean sidhe, ou seja «mulher das fábulas»). Estas tanto se podiam manifestar como jovens donzelas ou como velhas bruxas, ambas com longas tranças e olhos vermelhos de chorarem.
Quando estas feiticeiras apareciam, criava-se sempre um ambiente assustador, pois acontecia pouco antes da morte de alguém, que elas acompanhavam com lamentos e queixumes numa estranha linguagem.
O talentoso e bonito deus Sol, Lugh, desceu ao mundo dos mortos e tornou-se num artesão, passando a ser chamado de «o pequeno Lugh arqueado» ou Luchorpain. Os companheiros eram conhecidos por leprechauns e são representados no folclore como trapaceiros, sapateiros e guardadores de tesouros e de potes de ouro.
E foi assim que o poderoso e magnífico povo Tuatha Dé Danann se tornou em personagens fantásticas da mitologia irlandesa, que ocasionalmente passam breves momentos acima do solo nas alturas em que é levantado o véu entre o Além e o mundo dos vivos, como sucede no Samain e Beltaine.
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