sexta-feira, 24 de agosto de 2018

A Lasciva dança de Ame no Uzume, a deusa da Chuva.


Ame no Uzume, a gigante deusa da Chuva e a mais espirituosa das deusas sapateava sobre o patamar de uma pedra: com os pés, com o corpo e com a alma. A música brotava de dentro dela, levando-a a mover os pezinhos com destreza e maestria, ora rodopiando o corpo como pião, ora saltando de uma pedra a outra, enquanto seus braços manejavam a tempestade e orquestravam os raios que ela fazia vibrar em volta de si. Os raios esgrimiam ao seu redor os seus espadins recurvos a cada vez que a bailarina erguia o braço ou que uma de suas pernas esquias se erguia dentre longas vestes, já em tiras, porém sem nunca atingi-la.

Fortes gotas de chuva começaram a desabar dos céus. Um cheiro gostoso de chuva, de terra úmida e de mato selvagem se espalhou pelo ar, adentrando as narinas da platéia, que aspirou profundamente o aroma como uma dança nos pulmões, porém sem jamais desviar os olhos vidrados do improvisado palco.


A água deslizava pelo corpo quente e suado da bailarina num frescor delicioso. Ela foi ficando toda molhada. Brilhosa. Salpicada de gostas. Passou a língua sedenta nos lábios rubros como sangue, bebendo chuva, sorvendo gota por gota da água que descia agora a cântaros dos céus. Oitocentas deidades menores a imitaram e se puseram a sapatear em volta dela como pingos na pedra, num som maravilhoso.

Diminuindo o célere ritmo dos pés, ela prosseguiu numa dança mais lenta, ondulando o corpo e, tomada pela naturalidade de sua arte milenar, foi despindo suas vestes uma a uma, exibindo suas partes intimas com lasciva inocência.

Todos só tinham olhos para aquela nudez seráfica que mais e mais se revelava a cada manto que subia aos ares como uma pomba embriagada. A sombra de seus longos braços envolvia o mundo e ela despia-se e despia-se, e despia-se parecendo não acabar nunca os mantos e sobremantos que lhe cingiam o corpo esbelto. Os gestos se multiplicavam irreais como num sonho e num tamanho tão desproporcional e mítico que, de quando em quando, sob o tremor e ângulo da luz dos relâmpagos, seus proporcionais seios tomavam a dimensão de gêmeas montanhas, e sua boca, de seus suaves lábios, poderiam facilmente devorar o mundo.
-Tão pura metida neste corpo pornográfico! – embasbacava-se um anão de fala pastosa, tamancos altos (que lhe enchiam de orgulho) e olhos vidrados na fascinante súcubo. Devorando-a com os olhos, foi aproximando-se com as curtas pernas bambas, cabeça esticada para a frente como se estivesse sendo puxado pelo nariz. Postou-se aos pés da lasciva dama e não ali quem lhe fizesse arredar um centímetro que fosse.

Quando a dançarina descobriu, enfim, os belos seios, o nanico esteve a poucos passos de um sincope cardíaca. Pôs-se a gritar, bater no peito e estraçalhar tudo o que lhe vinha pela frente, parecendo um orangotango exibicionista. De tal forma exaltou-se o anão, que os demais tiveram que o arrancar á força dali, antes que desabasse duro, de focinho na lama como um porco chafurdador.

Dançava ela num ritmo cada vez mais lento, mais languido, mais cadenciado e acariciava-se, puxava os mamilos dos magníficos seios, sob os relâmpagos que espocavam iluminando sua desfaçatez. De tal desenvoltura e sensualidade era sua dança que, perto dessa verdadeira performance, uma dançarina queixa não passava de um poste enterrado na lama. Estava Ame no Uzume tão deliciosamente incoerente em seu papel, mistura de comicidade, volúpia e inocência, que o panteão inteiro, principalmente o masculino, se pôs a aplaudir desvairadamente, de olhos vidrados e a pedir bis em meio a ruidosas gargalhadas e assobios.

Dentro da caverna, a diva do sol ergueu, finalmente, a cabeça e nos seus olhos surgiu um brilho de interesse e curiosidade. Algo lhe importava pela primeira vez desde a violenta morte de sua tecelã e de seu cavalo. Ergueu-se e foi ver o que estava acontecendo lá fora, ás portas de sua esquiva e solitária morada. Empurrou um pouco a pedra da porta e pôs o curto narizinho para fora, espiando, curiosa.

Piscou vivamente, ofuscada, momentaneamente, pela sua própria imagem refletida no espelho que estava pendurado na boca de sua caverna.

Era como se ela estivesse ali fora, quando ela se deu conta de que aquela criatura luminosa á sua frente era ela mesma, seus lábios abriram-se num valioso sorriso. Admirou-se, então, ajeitando seu cabelo roxo, luminosamente dourado, em êxtase de si mesma. Finalmente, desviando-se com dificuldade de sua própria imagem, tirou o pé da caverna, saindo de sua hibernação e inundando o mundo com sua luz e calor.

O clarão de seu fulgor ofuscou, momentaneamente, a todos e em seguida o deus Tajikarao a pegou pela mão e disse com rigorosa severidade:

- Por todos os deuses, não recue mais um único passo. Rainha da Luz – e com sua força descomunal, fechou a porta da gruta com uma pesadíssima rocha, para evitar que ela mudasse de idéia.

Na apoteose de sua beleza e glória, a gradiosíssima deusa-Sama pisou com seus pés nus o colorido tapete de pétalas de crisântemos, iluminando os céus e fazendo os youkay malignos debandarem da terra para seus covis, furnas e esconderijos.

Todos os olhos se voltaram para Amaterasu e o coração de todos bateu forte no peito, já esquecidos de tudo o mais que não de sua majestosa presença. Ergueram os braços, três vezes seguidas, acima de suas cabeças e desejaram-lhe saúde e longevidade:

- Banzai! Banzai! Bem-vinda deusíssima do Sol! – foi brado geral e, após muita bajulação e paparicação, alguém gritou em meio á multidão:

- Arigatô pela volta do saquê! – e um urro histérico acompanhou estas bem vindas palavras.

Secaram as garrafas que restava de bebida, sabendo que agora o teriam com abundancia, e comemoram os inumeráveis anos de fartura que se anunciavam gloriosamente.

Assim, com muito riso e pouco siso, graças á libertina dança da deusa da Chuva, o panteão conseguiu atrair a deusa solar para fora da caverna, trazendo de volta luz ao mundo.

Ame-no-Uzume-no-Mikoto é adorada ainda hoje como Xinto kami, espíritos nativos do Japão. Ela também é conhecida como Ame-no-Uzume-no-Mikoto, A Grande Persuasora, e A Mulher Celestial Alarmante. Pois é ela que ajuda a trazer de volta Amaterasu. E em várias outras passagens ela é a deusa que apazigua os muitos desentendimentos e sempre acaba convencendo-os. Ela se casou com Saruta-Hiko, o Deus da Terra.

Adaptação do livro “As melhores histórias da
mitologia japonesa” de Carmen Seganfredo.

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