terça-feira, 14 de agosto de 2018

Os Lestrigões.


A próxima aventura aconteceu com as tribos bárbaras dos lestrigões. Todos os barcos entraram no porto, atraídos pela paisagem segura da enseada, totalmente protegida por terra, apenas Ulisses ancorou seu barco do lado de fora. Assim que os lestrigões perceberam que os barcos estavam totalmente em seu poder, estes os atacaram, lançando pedras enormes que se despedaçavam, derrubando-os, e com suas lanças atacavam os marinheiros que se debatiam nas águas. Todos os barcos com suas tripulações foram destruídos, com exceção apenas do barco de Ulisses, que havia ficado do lado de fora, e percebendo que não tinham segurança, exceto se fugissem, exortou seus homens para que remassem vigorosamente, e assim conseguiram escapar.

Tomados de pesar pela morte dos companheiros ao mesmo tempo em que se rejubilavam por causa da fuga, eles prosseguiram viagem até que chegaram à ilha Ea, onde morava Circe, a filha do sol. Aí desembarcando, Ulisses subiu uma montanha, e olhando ao redor, não viu nenhum sinal de habitação, com exceção de um local no meio da ilha, onde ele avistou um palácio cercado de árvores. Mandou metade da sua tripulação, sob o comando de Euríloco, para verificar, que chance de serem bem recebidos, eles poderiam ter ali. E a medida que se aproximavam do palácio, foram imediatamente cercados por leões, tigres, e lobos, não ferozes, mas, domados pelos encantos de Circe, pois que era uma poderosa feiticeira.

Todos esses animais anteriormente tinham sido homens, porém, transformados pelos encantamentos de Circe na forma de animais. Tons de música suave eram ouvidos do lado de dentro, e uma voz feminina que cantava. Euríloco chamou em voz alta e a deusa apareceu convidando-os para entrarem, todos entraram felizes com exceção de Euríloco, que desconfiava de algum perigo. A deusa convidou seus hóspedes para que sentassem, e mandou servir para eles vinho e outras guloseimas. Depois que tinham se divertido bastante, ela tocou todos eles, um a um, com sua varinha mágica, e eles foram imediatamente transformados em porcos, com "cabeça, corpo, voz, e cerdas," muito embora conservassem a inteligência de antes. Ela os prendeu em seus chiqueiros e forneceu a eles algumas bolotas, e muitas outras coisas que os suínos adoram.

Euríloco correu rapidamente até o navio e contou o acontecido. Ulisses então, decidiu ir ele mesmo, e tentar de alguma maneira a libertação de seus companheiros. Assim que ele caminhava sozinho, encontrou um jovem que com aspecto familiar, parecendo ser conhecedor de suas aventuras. Ele se apresentou como sendo Mercúrio, e informou a Ulisses a respeito da feitiçaria de Circe, e sobre o perigo de se aproximar dela. Como Ulisses jamais desistiria de seus planos, Mercúrio deu a ele um ramo da planta Moly, com poderes mágicos para resistir à feitiçaria, e ensinou a ele como devia fazer. Ulisses continuou, e chegando ao palácio, foi gentilmente tratado por Circe, que o recebeu como ela havia feito com seus companheiros, e depois que ele tinha comido e bebido, tocou nele com a varinha mágica, dizendo,

"Vai, procura teu chiqueiro e vai chafurdar junto com teus amigos." Mas ele, ao invés de obedecer, sacou da espada e se atirou contra ela com fúria no semblante. Ela caiu de joelhos e pediu misericórdia. Ulisses fez um juramento solene para que ela libertasse seus companheiros e não fizesse mais maldade contra ele, nem contra seus amigos, e ela repetiu o juramento, e ao mesmo tempo, prometeu soltá-los todos em segurança depois de recebê-los com hospitalidade. Ela foi fiel à sua promessa. Os homens retomaram as suas formas, o resto da tripulação que estava na costa foi chamada, e todos foram magnificamente tratados durante vários dias, até que Ulisses parecia ter esquecido sua terra natal, e ter-se conformado com uma vida inglória de facilidades e prazeres.

Pouco a pouco, seus companheiros fizeram com que ele recordasse seus sentimentos mais nobres, tendo ele recebido a advertência com gratidão. Circe ajudou durante a partida, e ensinou a eles como atravessar com segurança a costa das sereias. As sereias eram ninfas do mar, que tinham o poder de encantar, com suas canções todos os que parassem para ouvi-las, de modo que os infelizes marinheiros eram irresistivelmente impelidos a se lançarem ao mar onde acabavam mortos. Circe orientou Ulisses para que ele enchesse os ouvidos de seus marinheiros com cera, para que eles não ouvissem a canção, e para que ele se amarrasse ao mastro do navio, e seus homens fossem estritamente orientados para que de modo algum deveriam soltá-lo, diante de qualquer coisa que ele dissesse ou fizesse, até que tivessem passado a ilha das sereias.

Ulisses obedeceu estas orientações. Ele encheu os ouvidos de seus homens com cera, e permitiu que eles o amarrassem firmemente com cordas ao mastro. Quando eles se aproximaram da ilha das sereias, o mar estava calmo, e acima das águas bailavam as notas musicais tão arrebatadoras e atraentes que Ulisses lutou para se soltar, e gritando e fazendo sinais para os seus homens, ele implorou para que fosse solto, mas eles, obedientes às ordens que haviam recebido, avançaram em sua direção e o amarraram ainda mais forte. Eles mantiveram o curso, e a música ia ficando mais fraca até que não pode mais ser ouvida, quando com alegria Ulisses deu aos seus companheiros o sinal para que seus ouvidos fossem descerrados, e então, eles o soltaram de suas amarras.

A imaginação do poeta, John Keats (1795-1821), revela-nos os pensamentos que passaram pelas mentes das vítimas de Circe, depois que foram transformados. Em seu poema "Endimião" ele representa um deles, um monarca que foi transformado em elefante, dirigindo-se desta maneira à feiticeira em linguagem humana:

"Não reivindico a coroa da felicidade novamente,
Nem minha falange nas planícies,
Nem minha esposa, sozinha e viúva agora,
Nem lamento mais as gotas rosadas da vida,
O carinho de meus adoráveis filhos,
Hei de esquecer tudo isso, todas essas alegrias passarão,
Nada de celestial peço, nem muito alto
Somento peço a morte, como prêmio mais justo,
Do que permanecer nesta situação incômoda,
Nesta prisão rude, detestável e imunda,
E simplesmente entregue ao ar sombrio e gélido.
Tende piedade, oh deusa Circe, ouve minhas súplicas!"
Cila e Caríbdis

Ulisses tinha sido avisado por Circe sobre os dois monstros Cila e Caríbdis. Já encontramos Cila na história de Glauco, e nos lembramos de que ela fora outrora uma jovem donzela e que tinha sido transformada num monstro com corpos de serpente por Circe. Ela habitava uma caverna no alto de um penhasco, de onde ela tinha o hábito de lançar para fora seus longos pescoços (pois ela tinha seis cabeças), e e em cada uma de suas bocas ela pegava um homem da tripulação de cada navio que passasse ao seu alcance. O outro terror, Caríbdis, era um redemoinho, quase ao nível da água. Três vezes por dia a água se lançava num abismo assustador, e por três vezes era expelida. Qualquer barco que se aproximasse do torvelinho durante o avanço da maré era inevitavelmente engolido, nem Netuno poderia evitar essa tragédia.

Ao aproximar-se do refúgio dos monstros assustadores, Ulisses teve de manter estrita vigilância para encontrá-los. O rugido das águas assim que Caríbdis os engoliu, os alertou à distância, mas Cila de modo algum poderia ser descoberta. Enquanto Ulisses e seus homens assistiam com olhos arregalados o terrível redemoinho, eles não conseguiam manter vigilância ao mesmo tempo contra o ataque de Cila, e o monstro, lançando suas cabeças de serpentes, agarrou seis dos seus homens, e, com guinchados estridentes, levou-os até seu esconderijo. Era a cena mais aterradora que Ulisses já tinha assistido, ver seus amigos sacrificados dessa maneira e ouvi-los gritando, sem sequer poder oferecer-lhes alguma ajuda.

Circe também o havia alertado de um outro perigo. Depois de passar por Cila e Caríbdis a próxima terra que ele deveria atravessar era a Trinácria, uma ilha, onde o gado de Hipérion, o deus sol, costumava pastar, vigiado por suas duas filhas Lampécia e Faetusa. Aqueles rebanhos não poderiam ser profanados, quaisquer que fossem as necessidades dos viajantes. Se essa determinação fosse transgredida, a destruição certamente cairia sobre os ofensores.

Ulisses preferiria ter passado a ilha do Sol sem ter de fazer uma parada, mas seus companheiros tanto lhe imploraram por descanso e repouso que seriam auferidos com um dia de ancoragem, passando a noite no litoral, que Ulisses concordou. No entanto, fez com que eles prometessem que não tocariam nenhum dos animais que faziam parte dos rebanhos e manadas sagrados, mas que se contentassem com as provisões que ainda restava daqueles suprimentos que Circe havia colocado a bordo. Enquanto estes suprimentos duraram, as pessoas conseguiram manter o juramento, porém, ventos contrários os detiveram na ilha durante um mês, e após consumirem todo seu estoque de provisões, foram obrigados a contar com os pássaros e peixes que eles conseguiram pegar. A fome começou a oprimi-los, e finalmente um dia, quando Ulisses precisou se ausentar, eles mataram alguns dos gados, e inutilmente tentaram reparar o mal que fizeram, ofertando uma parte do gado às potencialidades injuriadas. Ulisses, ao retornar à costa, ficou horrorizado ao perceber o que seus homens haviam feito, e mais ainda por causa dos indícios agourentos que se seguiram. As peles rastejavam pelo chão, e os pedaços de carne mugiam nos espetos enquanto eram assados.

O vento se tornou favorável e eles partiram da ilha. Eles não haviam se distanciado muito quando o tempo mudou, e uma tempestade com trovões e relâmpagos se iniciou. Um relâmpago explodiu no ar quebrando o mastro, o qual, com a sua queda matou o piloto. De repente o próprio navio ficou totalmente destruído. A quilha e o mastro flutuavam lado a lado, Ulisses fez com eles uma jangada, onde ele se agarrou, e, com a mudança do vento, as ondas o levaram à ilha de Calipso. Todo o resto da tripulação pereceu.

A alusão seguinte aos tópicos que acabamos de considerar são encontradas no poema "Comus" de John Milton, linha 252:

"... Vi muitas vezes
Minha mãe Circe e as três Sereias,
Entre as Naiades, com suas saias floridas
Colhendo ervas potentes e drogas venenosas,
Que, a medida que cantavam, levavam a alma prisioneira
Envolvendo-a no Elísio. Cila chorava,
E esbravejando suas ondas, que rugiam com ponderação,
Enquanto Caríbdis sucumbe ao suave aplauso de um murmúrio."

Cila e Caríbdis ficaram muito conhecidos, quando simbolizam perigos opostos que afligem o destino de alguém.

Calipso

Calipso era uma ninfa do mar, cujo nome diz respeito a inúmeras classes de divindades femininas de nível mais baixo, embora compartilhem muitos dos atributos dos deuses. Calipso tratou Ulisses com hospitalidade, recebeu-o com magnificência, apaixonou-se por ele, e desejou retê-lo para sempre, conferindo-lhe imortalidade. Mas ele persistia em sua decisão de voltar para o seu país, sua esposa e seu filho. Calipso finalmente recebeu ordens de Jove para libertá-lo. Mercúrio trouxe a mensagem para ela, encontrando-a em sua gruta, que é assim descrita por Homero:

"Uma videira de jardim, luxuriante por todos os lados,
Cobria a espaçosa caverna, com cachos pendurados
Em profusão, quatro fontes da linfa mais serena,
O curso sinuoso segue lado a lado,
Dispersando-se por todos os lados e surgindo por toda parte
Pradarias com a verdura mais suave, coroada de púrpura
Uma paisagem repleta de violetas
Um deus dos céus cheio de maravilha e deleite."
Odisseu e Calipso

Calipso, com muita relutância, decidiu obedecer às ordens de Júpiter. Ela forneceu a Ulisses os meios de construir uma jangada, deu-lhe as provisões que ele precisava, além de ventos favoráveis. Durante muitos dias fez a sua viagem com relativa tranquilidade, até que finalmente, ao avistar terra, uma tempestade o visitou quebrando o mastro, e ameaçando fazer em pedaços a jangada. Nesse clima de desespero, ele foi avistado por uma piedosa ninfa do mar, que na forma de um cormorão pousou em sua jangada, e o presenteou com um cinto, e orientava-o para que o prendesse ao peito, pois se ele tivesse que se atirar nas ondas, o cinto o faria flutuar e permitira que ele fosse nadando até a praia.

François Fénelon (1651-1715), em seu romance "As Aventuras de Telêmaco" relata-nos as aventuras do filho de Ulisses à procura de seu pai. Dentre os inúmeros lugares a que ele chegou, seguindo as pegadas de seu pai, estava a ilha de Calipso, e, como no caso anterior, a deusa tentou todo tipo de magia para mantê-lo na ilha, chegando até a oferecer-lhe a imortalidade ao lado dela. Mas Minerva, que na forma de Mentor[4] acompanhava o jovem, governando-lhe todos os seus movimentos, fez com que ele rejeitasse todos os seus encantos, e quando ele não encontrou mais maneiras de escapar, os dois amigos saltaram de um despenhadeiro para o mar, e nadaram até um barco que os estava esperando à beira da praia. Byron alude a este salto de Telêmaco e Mentor na estrofe seguinte:

"Porém, não em silêncio atravessam as ilhas de Calipso,
As irmãs detentoras da média profundidade,
Ali perto, um porto sorri para os cansados nadadores,
Embora a bela deusa há muito deixara de chorar,
Do alto de seu penhasco, mantendo inútil vigilância
Sobre aquele que preferiu uma noiva mortal.
Nesse mesmo lugar seu filho ensaiou o terrível salto,
O sisudo Mentor olhou do alto a maré lá embaixo,
Enquanto os dois, suspirando duplamente, davam adeus à rainha das ninfas."

Fonte: O Livro da Mitologia de Thomas Bulfinch.

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